18 de outubro de 1994: Oração Gratulatória*
Senhores,
“Um sentido novo de vida assinala esta solenidade. Aqui estão reunidos homens de ciência, de letras médicas e atividades magisteriais e profissionais, institucionalmente associados em torno a Milton Hênio Netto de Gouvêa, figura exemplar de médico ilustre que conseguiu conciliar os hieráticos princípios do exercício profissional e científico com a amorável condição social do médico de família, pelos milhares de crianças a quem deu saúde e alegria, para o registro e a aposição do sinete inarredável de constituição de uma entidade de ordem cultural e científica destinada ao estudo e desenvolvimento das ciências médicas, no labor infinito da saúde e felicidade dos homens”.
“É o desabrochar de uma vida interior estuante de compreensão dos superiores desígnios da pessoa humana, robustecida da convicção da valia maior da eterna insatisfação do conhecimento, na sua mais ampla concepção, que a cintilância da inteligência multiplica e desenvolve para o trabalho da vida aparente que nos envolve e domina, criando os mundos, as civilizações, os conflitos ou a bem-aventurança da paz e agregando ou confrontando os homens”.
“…Instala-se, neste instante, em meio às galas desta festa memorável, a ACADEMIA ALAGOANA DE MEDICINA. Não é o Jardim da Academia de Platão a reunir os doutos nas altas elucubrações filosóficas, origem e nome das instituições que, no universo, perseguem os superiores e plurais princípios da formação cultural, científica e literária…”
“Transcende, na sua concepção e nos seus propósitos, as fronteiras das várias instituições e órgãos que, no País ou na província, associam os seguidores da divina arte no trato respeitável das atividades profissionais, corporativas, sociais, educativas e políticas. Deverá ser órgão de alto saber e profícua atividade cultural científica e social, procurando, sem qualquer desprimor para ninguém, orientar seus passos com a augusta firmeza dos humildes, a serena coragem dos que cultivam a verdade, a ousadia dos que têm fé e a altitude que o trabalho e o estudo engrandecem…”
“…A 29 de abril de 1829 foi fundada no Rio de Janeiro a ACADEMIA NACIONAL DE MEDICINA, considerada a mais antiga associação científica do Brasil. Mereceu as honras de visita do Regente do Império, D. Pedro II, então com nove anos e meio de idade tendo sido conduzido à sala de reuniões e assentado em um trono preparado à direita da mesa da presidência. Contou como fundadores com o trabalho, então pioneiro, de dois médicos franceses, o Dr. José Francisco Xavier de Sigaud e Dr. Jean Maurice Faivre, além dos brasileiros Joaquim Cândido Soares de Meireles, Luiz Vicente de Simone e José Martins da Cruz Jobim. Centenária a veneranda instituição vem cumprindo com valor inestimável as suas finalidades, representando entidade da maior expressão na vida científica nacional, além de respeitável conceito internacional”.
“A primeiro de novembro de 1918, setenta e seis anos, instalava-se em Maceió a ACADEMIA ALAGOANA DE LETRAS, embalada pela palavra vibrante de Guedes de Miranda, que, vale recordar, pelo brilho inconfundível da flamejante oração, traçando os rumos e definindo comportamentos da novel instituição: ‘A Academia Alagoana de Letras, que se inaugura nesta solenidade, começa d’ora em avante existir, e existe necessariamente, como uma afirmação de que temos um destino intelectual e político, uma personalização inconfundível como parte integrante e unidade representativa da jovem família brasileira. E agora que ateamos o lume sagrado para a formação do culto, não deixemos apagar-se, extinguindo-se na exaustão covarde de desânimo, mas flamejemo-lo na nossa fé, como nas primitivas combustões da terra mater. Esparsos, éramos os fatores da idealidade pura; reunidos, seremos a expoência de uma energia, cuja resultante são as próprias forças motrizes do movimento eurítimico e sonoro de Alagoas para as suas definitivas atitudes de beleza. A luta surgirá: não recuemos. Lutar é definir-se: definamo-nos. Assumamos, nobres confrades, nesta hora grave de responsabilidade, a obrigação solidária de construir a literatura alagoana, desvendando as belezas de suas lendas, de seus costumes, de sua poesia, de sua história, de sua religião, através das eras mortas, evangelicamente ressuscitadas pela voz oracular das tradições nesta páscoa profana que celebramos sobre os olhares iluminísticos do pensamento de Alagoas, para sua maior e perpétua glorificação’”.
“Estamos, a partir de agora, engastados na vida social e institucional da Província, no universo da difícil problemática que a civilização determina, não podendo representar, apenas, mais uma organização, acomodada no hedonismo do conforto que entorpece; no absenteísmo que desagrega; na discussão artificial estéril e contemplativa, na fatuidade e na falsa vanglória social, alheios ao instintivo gregarismo que aproxima os homens e estimula as saudáveis reações e desenvolvimento de grupos sociais no cultivo das melhores virtudes…”
“…É singular a nossa posição institucional como ACADEMIA DE MEDICINA, sem uma específica ação executiva nos múltiplos aspectos e facetas da atividade médica, mas não nos será defeso, porém, pela altitude de conhecimento, isenção, espírito público, seriedade e firmeza, que imprimirmos as nossas manifestações, configurar perspectiva de nos tornarmos um grande estuário de reflexão, estudo e orientação dos problemas médicos e da medicina, da ciência pura ou aplicada, das influências sociais, políticas, legais, morais, éticas, relacionadas com a divina arte…”
“…Ontem a nossa presença, conhecida e plena de confiança, era para o enfermo como farol para o navegante perdido na escuridão, transformada hoje num titular médico, quase anônimo, valendo em função da estrutura a que serve. Cuidávamos do indigente, mas não conhecíamos o miserável. Hoje o enfermo às vezes tem uma moeda no bolso, uma profissão, mas não possui a sua família acesso regular à previdência que pagou. E agravando o quadro o mundo dos pobres e marginalizados, o espectro da fome, com a nova conceituação do excluído social, que na aflição e no desvario, constituem os bolsões de miséria, e abandonados da razão e dos elementares princípios humanos, agridem, violam, sequestram, matam. Já um príncipe da igreja outro dia clamava: ‘Há anos vivo no mundo dos pobres e marginalizados, sentindo o desconforto de me sentir um privilegiado, sentindo vergonha e indignação diante do aviltamento e das condições abjetas em que vive o nosso povo, Cada vez mais entendo que o pão que é comido sem ser partilhado é um pão maldito’”.
“A formação profissional médica extensiva, desenvolvida em quase uma centena de cursos, apesar de ilhas de excelência, ainda registra a necessidade de um ajuste progressivo no interesse de um produto final adequado às necessidades do País. Se a especialização é uma resultante inapelável do desenvolvimento científico, a medicina generalista, o médico de família, são imperativos que o bom senso e a sabedoria reclamam…”
“…Em 1957, paranifando a médicos da Faculdade de Medicina de Alagoas, já bradávamos com destemor e certo sentido de clarividência: ‘A medicina brasileira vive dias de apreensão. Avultou e agigantou-se no domínio da técnica e na sedimentação da cultura. Cresceu e espargiu os benefícios distribuindo a mãos cheias as reservas de bondade do coração de seus prosélitos. Encheu o império de barões e viscondes glorificados pela Casa reinante do reconhecimento de seus méritos e virtudes. Exaltou a república participando da vida pública brasileira e através de sua técnica saneou cidades e criou civilizações. Exerceu por bondade e solidariedade humana a atribuição constitucional de amparo e assistências das populações…”
“…Mais um dia sob a aparência de salvação das massas ataram-lhe a golinha de salário. Nivelaram-nos no anonimato das siglas, dos números e das letras e à custa de nossa ciência, de nossa bondade, do nosso prestígio, de nossa vida, em suma, montaram uma máquina onipotente de favores, galgando os postos, dominando a nação e atrelando-nos, quais novos barqueiros das lendas eslavas, aos remos das trirremes, sem o desabafo sequer dos cantos e melodias que a arte fixou para o nosso enlevo e reflexão…”
“…Talvez inspirados no conhecimento da grave problemática e fortalecidos dos sadios princípios que nos dominam estejamos agora aqui a nos congregar em uma ACADEMIA DE MEDICINA. Melhor fora, nesta solene reunião, faustosa no ritual, uma palavra nova, vibrante, varonil, estuante de vida e mocidade, mas quisestes, por nímia generosidade, ouvir a alguém que pelo tempo e pela experiência, pudesse vos trazer conceitos verazes, autorizados mesmo, sem falsa modéstia, por um exercício profissional que já ultrapassou seis décadas, não transcorrido na placidez do conformismo incolor e subalterno, mas vivido intensamente, não desertando nunca da lição no estudo, no trabalho, na construtiva inquietação científica, na compreensão social, a predicar, construir, inovar, na fidelidade intransigente às prerrogativas sociais da profissão, clamando, servindo, protestando, despertando às vezes sentimentos malsãos de almas menores, o bafio gélido do ódio e da inveja, perguntando-me às vezes ante a insídia alienada e sem nexo a duas vezes milenar interrogação, nunca respondida, dos mártires de Roma antiga – para onde vais? Para onde vai o mundo? Para a lei do amor ou do ódio?”
“E aqui me tendes, honrado com a Presidência de Honra que me concedestes desta ACADEMIA ALAGOANA DE MEDICINA, distinção que exalta e consagra, despertando em mim sublimado sentido interior de alegria espiritual, dizendo-me a mim mesmo que foi magnífico viver, que fui útil e que servi, representando neste momento estelar para as novas gerações uma referência singular de minha existência…”.
“…Asseguremos pelo nosso labor permanente vida e fulgor à Instituição que nos dará o retorno do relevo de a Ela pertencer, respeitável pelo mérito e fulgência de seus procedimentos”.
“Tornemo-la um grande fórum da problemática médica alagoana e brasileira. A história da medicina alagoana é um filão rico de preciosas informações. Tivemos heróis quase anônimos, talvez santos, construtores magníficos da vida social da província; possuímos lideranças audazes que contrariaram a placidez do ambiente e ousaram desenvolver uma medicina maior”.
“Representemos o fermento aglutinador do desenvolvimento científico, tecnológico e de pesquisa. Pensemos no médico, na sua formação, na sua estabilidade profissional e social, na sua integração e fidelidade para com a medicina”.
“Assumamos o nosso destino, firmemo-nos na verdade como procedimento inarredável, cultivemos uma consciência arejada e moderna das nossas responsabilidades, honremos os nossos compromissos sociais e políticos com os médicos e a medicina das Alagoas e a vitória nos sorrirá como auroras que espancam o negro das noites temerosas, aclaram a festa das manhãs ensolaradas”.
“Senhores Acadêmicos – Eia, avante sois, para a glória e para a perfeição”.
Maceió – AL, 18 de outubro de 1994
Acadêmico Ib Gatto Falcão
*Texto editado do discurso proferido pelo Presidente de Honra, fundador e ocupante da Cadeira de n° 1 da Academia Alagoana de Medicina (AAM), Professor Dr. Ib Gatto Falcão (1914-2008), em 18 de outubro de 1994. O discurso na íntegra foi transformado em opúsculo e publicado sob o título “Oração Gratulatória”, pela AAM, com o apoio da Secretaria de Comunicação do Governo do Estado de Alagoas, em novembro de 1994. Acadêmico Francisco de Assis Costa.